Algumas situações são especialmente delicadas de lidar, principalmente as que envolvem uma expectativa intensa, como o aborto. O casal já recebeu o teste positivo, já está se preparando para receber o bebê e passa por uma perda inesperada. É uma situação complexa, que requer extremo acolhimento e análise detalhada do que pode ter causado o aborto.
O abortamento é caracterizado como a interrupção da gravidez até a 22ª semana de gestação. O termo aborto se refere ao material eliminado. Definido como duas ou mais perdas consecutivas de gravidez, o aborto de repetição (AR) é um dos principais fatores de infertilidade feminina. Pode ser provocado por diversas condições, entre elas anormalidades uterinas, alterações hormonais, problemas que afetam o sistema imunológico, alterações genéticas e trombofilias.
Para ser considerada como aborto, entretanto, a gravidez deve ter sido reconhecida clinicamente, por meio de exames como a ultrassonografia transvaginal, por exemplo.
Um percentual significativo de todas as gestações clinicamente reconhecidas termina em aborto. Mais da metade dos abortamentos são precoces, nas primeiras 12 semanas de gestação. Muitas vezes, a mulher nem havia percebido que estava grávida.
O risco de a condição se tornar recorrente, entretanto, pode aumentar quando houve perdas anteriores.
A maioria dos abortos de repetição resulta de anormalidades cromossômicas ou genéticas, e são eventos aleatórios. A anormalidade pode ser do óvulo, do espermatozoide ou do embrião formado. São mais comumente associados ao avanço da idade, quando há perda na qualidade dos gametas, principalmente a materna.
Estudos revelam que uma parte das perdas precoces de gravidez está relacionada a anormalidades na composição cromossômica do embrião (aneuploidia), provocadas por um ou ambos os pais. Elas geralmente ocorrem no processo de maturação, mais comumente dos óvulos e mais raramente do espermatozoide.
Um percentual expressivo dos embriões cromossomicamente anormais é abortado espontaneamente como mecanismo de seleção natural. As anormalidades mais comumente encontradas são erros no número de cromossomos para mais ou para menos, o que pode provocar condições como a síndrome de Down, em que o cromossomo 21 tem três cópias (trissomia 21).
Anormalidades anatômicas do útero também representam um percentual significativo de casos registrados de aborto de repetição. Podem ser congênitas (desde o nascimento), como útero septado, ou adquiridas, como miomas ou pólipos endometriais. Elas interferem na vascularização do endométrio, levando a uma placentação irregular e inadequada, causando, consequentemente, a perda de gravidez.
A deficiência da fase lútea, uma condição rara caracterizada pela função ovariana anormal com diminuição da produção de progesterona, também é apontada como uma das causas de aborto de repetição, associado ainda a outras alterações hormonais, como o excesso na produção de prolactina, hipotireoidismo e desequilíbrios na glicose e na insulina.
O aborto de repetição pode ter origem em problemas imunológicos, entre eles o aumento das células NK (natural killer) no endométrio, e em desequilíbrios no sistema de coagulação sanguínea, que são as trombofilias.
Ainda, infecção do endométrio (endometrite), hipotireoidismo, diabetes, hipertensão e determinados hábitos, tais como o alcoolismo e o tabagismo, podem ser responsáveis por abortos de repetição.
Ainda, alterações anatômicas do útero, tais como miomas, adenomiose, pólipos e malformações uterinas, causam abortamento.
Por ser uma entidade de tanto impacto emocional, quando a paciente tiver que se submeter a tratamento de FIV (Fertilização in Vitro), essas causas de abortamento devem ser previamente excluídas, minimizando o risco.
O primeiro passo é realizar uma avaliação do histórico para ambos os parceiros, com informações sobre gestações anteriores e abortos espontâneos, histórico familiar de infertilidade ou aborto de repetição e estilo de vida, considerando hábitos como tabagismo, alcoolismo e nutricionais. Além disso, deverão ser realizados os seguintes exames:
O exame de cariótipo faz um mapeamento dos cromossomos para diagnosticar alterações em ambos os pais. As células podem ser avaliadas por exame de sangue.
Exames de sangue devem ser solicitados, com o objetivo de excluir doenças que possam causar abortamento. Entre eles, são muito importantes os exames de Prolactina, TSH, T4livre, perfil reumatológico e trombofilias.
Deve-se investigar os exames de trombofilias genéticas e adquiridas. São eles: anticorpo anticardiolipina, anticorpo beta2glicoproteína, anticoagulante lúpico, homocisteína, mutação do fator V Leiden, gene da protrombina, antitrombina III, fator VIII, fator IX, proteína S, proteína C e polimorfismo PAI 1 4G/5G.
A biópsia endometrial, realizada por histeroscopia ambulatorial, auxilia no diagnóstico de endometrite e aumento de células NK CD56 no endométrio, que podem ser causas de abortamento. Ainda, o exame de histeroscopia pode evidenciar alterações dentro da cavidade uterina que eventualmente precisem ser reparadas.
A ultrassonografia transvaginal pode revelar alterações anatômicas do útero, tais como miomas submucosos e pólipos endometriais, que podem ser responsáveis por abortos. Ainda, por esse exame, pode-se suspeitar da presença de malformações uterinas, tal como a presença de septo. O diagnóstico de malformação mülleriana é confirmado com o exame de ressonância nuclear magnética de pelve.
O tratamento é individualizado, definido de acordo com as necessidades de cada paciente e com a causa apontada pelo diagnóstico. Pode ser farmacológico, cirúrgico ou com a utilização de técnicas de reprodução assistida (TRA), principalmente a FIV, que oferece diversos recursos para investigar os problemas relacionados ao aborto.
O tratamento hormonal é indicado quando há presença de miomas, endometriose, adenomiose e pólipos endometriais. Geralmente são prescritos antagonistas da progesterona, inibidores de aromatase, análogos de GnRH ou contraceptivos orais combinados (estrogênio e progesterona).
Eles atuam na redução dos miomas, da adenomiose e da endometriose, que podem estar associados a mau prognóstico da gestação.
A presença de endometrite deve ser tratada com antibioticoterapia e realização de nova biópsia endometrial, confirmando a cura. Em casos extremos, nos quais a endometrite destruiu a camada basal do endométrio e o tecido endometrial não consegue mais proliferar, o uso intraútero de fator de crescimento endotelial (granuloquine) ou PRP (plasma rico em plaquetas) podem ser utilizados, como opção de resgate.
Quando a biópsia endometrial evidencia alteração imunológica do endométrio (aumento de células NK), o tratamento é realizado com uma medicação composta de emulsificado de lipídios (intralipid) por via endovenosa.
Era muito comum o uso de anti-inflamatórios hormonais nesses casos. Entretanto, a literatura recente relata que eles não devem ser utilizados, já que provocam uma imunossupressão não seletiva das células NK do endométrio. Logo, os corticoides só devem ser administrados em casos selecionados, nos quais as pacientes apresentam alguma doença imunológica.
Quanto ao tratamento das trombofilias, pode englobar o uso de aspirina e heparina de baixo peso molecular, dependendo se a trombofilia é adquirida ou congênita. Quando a trombofilia é congênita, o tratamento se baseia na administração de heparina. Mas, quando ela é adquirida, tal como a SAAF (síndrome de anticorpo antifosfolípide), a paciente deve usar aspirina concomitante ao uso da heparina.
Finalmente, pacientes portadoras de doenças crônicas, tais como diabetes, hipertensão e hipotireoidismo, devem ter suas doenças de base corrigidas com terapêutica adequada.
O tratamento cirúrgico é recomendado se houver alterações uterinas congênitas ou provocadas por miomas, pólipos endometriais, sinéquias ou septo uterino. O procedimento geralmente adotado é a histeroscopia cirúrgica, que utiliza um histeroscópio, tubo ótico com sistema de iluminação e câmera acoplada, possibilitando o acompanhamento em tempo real por um monitor. A histeroscopia tem como via de acesso o canal vaginal, diferentemente da videolaparoscopia.
É importante ressaltar que o diagnóstico de útero bicorno não favorece a ocorrência de abortos. Logo, nesses casos, as cavidades uterinas não devem ser reparadas.
Quando há problemas genéticos, a FIV é a melhor opção. Umas das técnicas complementares à FIV, o teste genético pré-implantacional (PGT-a), possibilita a seleção de embriões saudáveis, que serão posteriormente transferidos para o útero.
Após a formação dos embriões, que ocorre a partir da fecundação dos gametas em laboratório, o PGT analisa por biópsia os genes que podem ser responsáveis por doenças hereditárias, além de anormalidades cromossômicas. Pode ser feito por casais ou pessoas solteiras que possuam algum distúrbio, independentemente de serem ou não inférteis.
A biópsia embrionária padrão ouro é o NGS (next generation sequence). Essa biópsia é realizada quando o embrião está no estágio de blastocisto e consiste em um sequenciamento do genoma do embrião. É a biópsia que fornece a maior especificidade de resultado, assim como a menor ocorrência de mosaicismo.